"Todo aquele que reflete está interessado no espelho. O espelho é por definição, um instrumento que reflete, que especula (de speculum = espelho). São Paulo diz que as criaturas são espelhos que refletem Deus. O empirismo iluminista concebe o intelecto como espelho da natureza. O criticismo de Kant é uma revolta contra o espelho e condena o conhecimento especulativo. Para Hegel é o fluxo da realidade um contínuo espelhar de espelhos contrapostos em ângulos, e a dialética é o pensamento especulativo. Finalmente, Wittgenstein concebe a língua e a realidade como dois espelhos pendurados em paredes opostas num quarto vazio. Podemos enfocar, se quisermos, toda a história do pensamento do ponto de vista do espelho. Não seria, creio, um ponto de vista desinteressante. Mas o propósito do preste artigo é outro. Nutre a convicção de que o interesse pelo espelho tem atualmente uma estrutura diferente. Não estamos mais tão interessados na face reflexiva do espelho. O nosso interesse está na outra face, naquela que está coberta pelo nitrato de prata. Estamos invertendo espelhos. Este é um dos característicos da atualidade: espelhos invertidos. E espelhos invertidos serão o tema desse artigo.
A reflexão do espelho é conseqüência do nitrato de prata. Não existisse, e o espelho seria transparente. Seria janela. E a janela é, como sabemos, outro problema. Não menos apaixonante. Fala-se muito em abrir janelas e pouco em fechá – las. Mau sinal, creio porque a janela é algo que pode ser fechado: não é buraco. Mas isto é, como disse, outro problema. O espelho não é janela por causa do nitrato de prata. Reflete. É verdade que a maneira como reflete é conseqüência da forma do vidro. Vidro plano espelha de forma diferente de vidro côncavo ou convexo. Antigamente, naqueles tempos bons que sabiam tanto a respeito daquilo que se espelha no espelho, costumava – se dizer que espelhos côncavos ou convexos distorciam o espelhado. Espelhos planos e lisos eram tidos por fiéis, isto é, verdadeiros. Nós que ignoramos tudo a respeito daquilo que se espelha, admitimos, um tanto desesperados, a equivalência de todas as formas de reflexão como captações de algo. Não sabemos mais o que seja fidelidade ou verdade.(...)"
Referência: Flusser, V., Ficções Filosóficas, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. Páginas 67-71.
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